Livro: Anna Kariênina;
Autor: Liev Tolstói;
Editora: Companhia das Letras;
Publicado em 1877;
Páginas: 808;
Nota:⭐⭐⭐⭐
Este foi meu primeiro contato com a literatura russa. Olhei para este livro pela primeira vez e pensei: “vou demorar muito para terminar”. Comecei a leitura, notando que não era tão complicado e a escrita era bem fluida. Fui aprendendo a gostar do ritmo de Tolstói e a pegar empatia por algumas personagens e ranço por outras. Passado um mês, havia lido bastante, já que estava lendo outro livro em paralelo.
No entanto, cheguei a uma parte bem chata na história e travei. A leitura não ia. Percebi que demoraria, sim, e muito. Então estipulei ler quatro páginas por dia, a meta era ler tudo até novembro. Cá estamos em novembro e o terminei em outubro. Estou muito orgulhosa de mim.
Segui a leitura a passos de tartaruga, mas consegui aproveitar cada página. Confesso que assuntos sobre política não me apetecem. Por isso, travei em algumas partes em que havia essas discussões na história. Apesar da demora, gostei muito de Anna Kariênina. Valeu a pena conhecer um pouco da cultura russa do século 19, e senti falta dessas personagens ao terminar a obra.
Resenha
Anna Kariênina, de Liev Tolstói, é uma obra-prima que explora a complexidade das relações humanas, revelando os conflitos entre o desejo pessoal e as convenções sociais da Rússia czarista do século XIX. O romance apresenta uma crítica contundente às estruturas rígidas e hipócritas da sociedade da época, especialmente em relação à posição da mulher e aos limites impostos à liberdade individual.
A mulher está privada de direitos por falta de instrução, e a falta de instrução decorre da ausência de direitos. É preciso não esquecer que a escravização das mulheres é tão grande e tão antiga que nós, muitas vezes, não queremos compreender o abismo que nos separa delas. (p. 394)
Tolstói cria um contraste entre duas histórias principais: a de Anna, casada e que se envolve com o charmoso Conde Vrónski, e a de Konstantin Liévin, um aristocrata rural em busca de uma vida autêntica e com profundas inquietações sobre a sociedade e a espiritualidade.
Anna representa uma mulher que ousa desafiar as normas sociais em busca do amor, mas sua escolha a coloca em uma posição de condenação social, já que sua relação extraconjugal com Vrónski é vista como uma afronta ao papel submisso esperado das mulheres. Sua tragédia reflete a falta de aceitação e a hipocrisia da aristocracia, que, apesar de manter aparências de moralidade, está profundamente marcada pela superficialidade e pela necessidade de aprovação social.
Enquanto isso, Liévin oferece uma visão alternativa, simbolizando a tentativa de encontrar sentido e moralidade fora das convenções sociais. Ele questiona o valor da propriedade, do trabalho e até da religião como instituições que parecem desconectadas do que realmente importa para o bem-estar humano. Em contraste com Anna, Liévin consegue uma resolução, e sua busca o leva a encontrar um propósito mais elevado na vida. Tolstói parece sugerir, através dessa dualidade, que a paz interior e a realização pessoal dependem de uma conexão autêntica com os valores individuais, e não com as expectativas de uma sociedade que muitas vezes desconsidera a verdadeira felicidade.
(…) veio a Liévin pela primeira vez a ideia de que dependia dele mesmo transformar essa vida enfadonha, ociosa, artificial e individualista que levava naquela vida trabalhadora, pura e de um encanto coletivo. (p. 282)
A crítica social do autor se estende também ao casamento, que Tolstói trata como uma instituição muitas vezes sufocante e que priva as pessoas, especialmente as mulheres, de sua individualidade e liberdade. A história de Anna questiona a validade de um casamento sem amor e denuncia o tratamento desumano que a sociedade dá às mulheres que fogem das convenções. Anna, ao abandonar o marido e o filho por Vrónski, desafia essas normas, mas paga um preço alto por sua coragem.
Embora soubesse, no fundo da alma, que a sociedade estava fechada para eles, quis verificar se a sociedade agora havia se modificado e os receberia. Mas logo se deu conta de que, embora a sociedade estivesse aberta para ele pessoalmente, se mantinha fechada para Anna. Como num jogo de gato e rato, os braços que se levantavam para dar passagem a Vrónski imediatamente baixavam na frente de Anna. (p. 531)
O relacionamento entre Liévin e Kitty (os personagens mais interessantes em minha humilde opinião) é uma representação das lutas, amadurecimento e do crescimento do amor verdadeiro. Liévin, um aristocrata idealista e introspectivo, e Kitty, uma jovem aristocrata que inicialmente não corresponde aos sentimentos dele, passam por um processo de autodescoberta antes de estarem prontos para uma união genuína.
Reconheceu que ela estava ali pela alegria e pelo terror que se apoderaram do seu coração. (…) para Liévin, foi tão fácil reconhecê-la na multidão, como uma rosa nas urtigas. Por sua causa, tudo se iluminava. Ela era um sorriso que irradiava luz em tudo ao redor. (p. 40)
Liévin propõe casamento a Kitty no início da trama, mas ela o rejeita, pois está apaixonada por Vrónski. Após ser rejeitada por ele, que escolhe Anna, Kitty vive uma fase de fragilidade e busca amadurecer emocionalmente (essa parte da história me lembrou muito de A Abadia de Northanger, de Jane Austen). Liévin, por sua vez, enfrenta uma crise existencial e reavalia sua vida e seus valores. Esse período de separação se torna fundamental para ambos, pois lhes permite crescer como indivíduos.
Quando se reencontram, Kitty e Liévin estão mais maduros e prontos para um relacionamento autêntico. O casamento deles, retratado com realismo e sensibilidade, passa por dificuldades e desentendimentos (ambos sofrem por serem ciumentos, principalmente ele), mas sua relação é construída sobre respeito, paciência e compromisso. Liévin aprende a abrir mão de parte de seu orgulho e a confiar, enquanto Kitty revela grande força emocional, apoiando o marido em seus momentos de crise.
A relação entre os dois, em contraste com o romance entre Anna e Vrónski, sugere que o amor verdadeiro exige comprometimento, autoconhecimento e um esforço contínuo para crescer juntos. Kitty e Liévin encontram a felicidade não na paixão idealizada, mas no companheirismo e na construção de uma vida em comum, que lhes oferece um propósito e uma conexão duradoura. Enquanto Anna e Vrónski parecem ser codependentes um do outro, chegando a um relacionamento tóxico.
De um lado, a alegria inocente das eleições e, do outro, o amor sombrio, penoso, para o qual ele teria de regressar, impressionaram Vrónski por seu contraste. (p. 667)
Ele tem o direito de partir, quando e para onde quiser. Não só de partir, mas de me abandonar. Tem todos os direitos, e eu não tenho nenhum. (Pensamento de Anna) (p. 667)
Há muitas cenas divertidas em todo o livro, como as do personagem Stiepan Arcáditch, marido de Dolly, irmã de Kitty. Ele é o perfeito cafajeste, mulherengo e malandro. Por mais que eu ficasse comovida por Dolly, Stiepan sempre me divertia. No entanto, a cena que mais me fez gargalhar foi quando Kitty deu à luz. Ver nosso querido Liévin perdido e sem saber o que fazer foi hilário.
Certa vez, o mandaram deslocar a mesa e um sofá. Ele o fez com zelo, pensando que era necessário para Kitty, mas logo depois soube que assim havia preparado um lugar para ele mesmo dormir. (p. 713)
Ao olhar para ela (no trabalho de parto), porém, via de novo que era impossível ajudar, ficava horrorizado e dizia: “Meu Deus, perdoe e ajude”. (p. 714)
Tolstói consegue capturar a hipocrisia, a fragilidade das aparências e a opressão das normas sociais com uma escrita poderosa, cheia de nuances psicológicas. Anna Kariênina é mais do que um romance sobre paixão e adultério; é uma análise profunda e crítica das restrições sociais, especialmente no que tange à moralidade, à individualidade e à busca por uma vida verdadeira.
2 comentários em "Anna Kariênina, de Liev Tolstói | Resenha"
Um texto maravilhoso, Regiane, como todos os seus. Gostei de muitos recortes que fez da obra para reflexões adicionais e resolvi trazer dois deles: "A mulher está privada de direitos por falta de instrução, e a falta de instrução decorre da ausência de direitos. É preciso não esquecer que a escravização das mulheres é tão grande e tão antiga que nós, muitas vezes, não queremos compreender o abismo que nos separa delas. (p. 394)" "Ele tem o direito de partir, quando e para onde quiser. Não só de partir, mas de me abandonar. Tem todos os direitos, e eu não tenho nenhum. (Pensamento de Anna) (p. 667)" Parabéns, flor! Mesmo!
Obrigada, amiga. Este livro é muito bom.
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